Foto do arquivo de Zélia Sell:
Primeiro abraço ao Parque São Lourenço
TRANSCRIÇÃO
Entrevista
concedida por Zélia Maria Nascimento
Sell à equipe da Pesquisa
Caminhos Históricos de Curitiba: A Estrada do Assungui, em sua casa no
bairro São Lourenço em Curitiba, no dia 17 de janeiro de 2012.
LEGENDA: PE – Pesquisadores
ZS – Zélia Sell
ZS – Quando eu
vim morar pra cá, a primeira pessoa que falou comigo foi uma senhora falecida
aqui da frente. O marido dela também, foi o último a morrer, a casa agora está
mudando de dono. E depois eu fui descobrir que ela tinha uma história de
Guerra. A maioria das pessoas aqui da região tinham histórias de guerra, tanto
que até as freiras do Colégio do Abranches vieram pra cá e não tinha nada, aqui
era um mato. Elas ensinavam piano, eram professoras de piano na Polônia, de
idiomas, tinham uma educação muito refinada. E os colonos levavam pra elas
manteiga, legumes porque elas ficavam no meio do mato. Aos poucos elas foram se
organizando, foi construído o Colégio São José, aqui do Abranches. Tem 100
anos.
PE – Tem então
relação íntima com o Abranches?
ZS – Com a
Colônia do Abranches, era uma escola da colônia. Veio justamente pra isso,
porque aqui tinha só escola avulsa, que se não engano, era aqui nessa região.
Eras as escolas isoladas, como diziam. E os colonos pediram pra que viesse um
colégio de freiras, muito religiosos. Muito católico os poloneses. Então vieram
essas freiras, mas quando desembarcam aqui, não tinha nada. Faz mais de cem
anos que vieram, foi começo do século XX.
PE – Zélia, se
apresente para que as pessoas te conheçam.
ZS – Eu sou
Zélia Maria Nascimento Céu, moro aqui no São Lourenço, a minha rua divide o São
Lourenço com o Abranches, a Rua Coronel João Cândido Muricy. Há mais de trinta
anos moramos aqui. Quando viemos pra cá, era um fim de mundo: não havia o
Colégio Santa Maria, não havia o supermercado, não havia quase nada, a não ser
o Parque São Lourenço que tinha sido recentemente criado por conta de um
acidente. Tinha estourado a represa com o lago. Nós soubemos que era um curtume
antes, era um lugar muito poluído. Muito antigamente, depois a gente foi
descobrindo, que era um lugar muito aprazível, que D. Pedro II, na sua visita
ao Paraná, passou por aqui, na rua de cima, a Rua Vitório João Brunor, tenho
impressão que era a estrada do Assungui. E ele inclusive encalhou ali,
pernoitou nesse grande casarão que temos até hoje, na esquina da Rua João Gava
com a Rua Mateus Leme. Então Dom Pedro II pernoitou ali e isso foi confirmado por
pessoas que foram proprietárias desse casarão.
PE – A função
original desse casarão, você sabe?
ZS – Bem, a
primeira notícia que a gente tem, era de um velho armazém. Um velho armazém que
os índios ainda, uns remanescentes de índios. Dizem que todos esfarrapados já, se
estabeleciam ali e o dono do armazém tinha que deixar, eles ficarem ali. Era um
chefe índio, com um grupo de índios em condições bem miseráveis, e quando o
chefe batia um bastão no chão, então eles se retiravam e iam embora. Eles
moravam aqui nas redondezas, mas eram remanescentes de alguma aldeia, não sei o
que seria. Na sequência, a gente sabe da chegada dos imigrantes. O que me
surpreende, é que tendo conhecimento com uma vizinha, bem próxima aqui na Rua
João Gava, hoje já falecida, a dona Anastácia Baka. A dona Anastácia era uma
moradora muito antiga, a casa dela ainda está ali. Certa vez eu estava tomando
café com ela na sua cozinha, e eu li um sinal no chão, um retângulo grande,
marcado, e perguntei o que era. Ela respondeu que era o forno da padaria dos
alemães. Eu perguntei como poderia ser dos alemães, se aqui era bairro de
poloneses. Não, ela disse que muito antes dos poloneses, aqui haviam alemães,
aqui era a padaria dos alemães. Então foi uma coisa que me surpreendeu, porque
eu sempre tive o Abranches como um bairro só de poloneses. Nós temos próximo
daqui também, a família Tomás, que é uma família de italianos, que escreveu uma
bela história desses italianos vindos ao Paraná na Colônia Santa Maria do Novo
Tirol da Boca da Serra, que é em Piraquara, e eles moram aqui. São meus
vizinhos de fundo e moradores muito antigos também. Então nós tivemos italianos
também aqui, há muito tempo atrás, reimigrados da Colônia Santa Maria do Novo Tirol,
onde ía passar uma estrada de ferro que não passou, alguma coisa assim, então
eles se espalharam, e alguns vieram pra cá também. Acredito que todos tenham se
reunido nessa Colônia Assungui, que era multiétnica.
PE – Quem sabe
até alguns foram reimigrados pra essa região do Abranches vindos do Assungui.
ZS – Exatamente.
Aqui no Abranches nós temos a história do Colégio, que já tem mais de cem anos,
essas freiras polonesas, de uma educação sofisticada, tocavam piano, falavam
vários idiomas, e chegaram aqui literalmente no meio do mato, na colônia. Os
colonos levavam um franguinho, um porquinho, uma manteiga no início, porque
elas não tinham como sobreviver. Depois construíram esse belo colégio, essa
igreja. É um colégio muito bom, Colégio São José, e foi muito festejado o
centenário do colégio alguns anos atrás. Então é toda uma história dessa
religiosidade dos poloneses muito grande e nós fomos acompanhando essas
histórias. Muitas histórias de guerra, a maioria dos meus vizinhos antigos aqui,
gente muito boa, remanescentes da guerra. A dona Guênia, que foi a primeira
pessoa que falou comigo quando eu vim ver o terreno, eu tinha recém ganho a
minha primeira filha, Letícia, estava até com dificuldade de andar ainda. Aqui
que nós começamos a ver o terreno pra construir a casa, meu marido e eu. E ela
veio conversar comigo. Moradora do outro lado da rua. Uma pessoa muito querida
por todos, e muito tempo depois, eu fiquei sabendo que ela, durante a guerra, ela
de origem polonesa, foi posta num trem pela mãe com um cestinho com alguns ovos,
legumes e nunca mais ela viu mais ninguém da família. Então no decorrer desses
anos que vivemos aqui, certa vez, depois da queda do comunismo na Europa, o
irmão veio visitá-la. Aliás foi antes da queda do comunismo, e ele teve uma
única autorização para vir ver essa irmã. E ela ficou felicíssima. Eu me lembro
quando ele foi embora, que ela segurava no portão e chorava, chorava muito,
porque ele não pôde trazer mais ninguém da família porque ainda era vigente o
comunismo, com medo que ele quisesse ficar aqui e não voltasse. Então foi o
único contato que ela teve com mais alguém da família muitos anos depois.
Depois ela veio a falecer, quando caiu o comunismo já não adiantou mais, ela
não pôde mais encontrar ninguém.
PE – Muitos desses
colonos que vieram para a Colônia Abranches devem ter passado pela mesma
situação, de não ter mais vínculo com a terra natal, de chegarem no meio do
mato. E quando você chegou aqui, como que era o acesso vindo pela Mateus Leme?
ZS – Era muito
barro, muito barro mesmo. A nossa rua aqui, em torno da minha casa, era muito
barro e aqui a terra era aquele tipo sabão de caboclo. Então era realmente
muito difícil. Mas aos poucos a gente foi calçando o entorno da casa, e um dia
nós fizemos um abaixo assinado. Eu me lembro que eu fui com o carrinho de bebê
da minha filha Marina, minha segunda filha, de casa em casa com o abaixo
assinado para que passasse antipó aqui na nossa rua. Passado um tempo, nós
conseguimos, rachamos entre todos os moradores e conseguimos com que fosse
passado antipó, que é o que nós temos até hoje. Aqui na Coronel João Candido
Muricy é o antipó daquela época, de quase trinta anos.
PE – Na época
que você veio a Mateus Leme já era asfaltada?
ZS – Não lembro
se a Mateus Leme era asfaltada ou calçada, mas era calçada. O Parque era recém
inaugurado, tinha sido transformado, com o Prefeito Jaime Lerner que criou,
então foi nessa época. Foi criado em 73, em 77 nós estávamos construindo a
casa, que foi quando minha filha nasceu, a gente começou a construir a casa e
em 80 a
nossa casa ficou pronta. Então é mais ou menos dessa época essa transformação
toda aqui da região.
PE – Falando em
transformação, tem alguma mudança que foi significativa pra você aqui na sua
vizinhança?
ZS – Teve uma
mudança muito grande, com relação aos vizinhos, os vizinhos antigos
maravilhosos, aqueles colonos, aquela gente boa, foram falecendo e foram sendo
substituídos por pessoas muito mais abonadas, mas nem sempre bem educadas,
infelizmente. Pessoas com mais dinheiro e menos educação. Então nós tivemos
problemas. A gente preserva muito o meio ambiente. Aqui em casa a gente
preserva as árvores nativas, e eu tive que chegar ao extremo de pôr um
alambrado em cima do meu muro pra preservar algumas árvores, que a vizinha
ficava enlouquecida se caísse uma folha no quintal dela. Eu cheguei a pegar
gente em cima do meu muro cortando a minha árvore nativa sem a minha
autorização.
PE – Logo no
início quando você veio morar aqui, havia algum hábito que você tinha de
frequentar algum lugar da vizinhança que hoje não existe mais?
ZS – Bem, quando
surgiu o Colégio Santa Maria, as crianças atravessavam o riozinho do outro lado
da rua, nos fundos da rua Mateus Leme, e atravessavam o riozinho em uma
pinguelinha e íam para aula. Atravessavam pela João Gava. Depois foi se
fechando tudo, as casas foram surgindo, do outro lado da rua também, então não
havia mais esse acesso. Naquele tempo, acho que não havia tanta maldade. A
gente fica pensando hoje, qual é a criança que vai sozinha pra aula com sete,
oito anos de idade. E andavam por tudo, brincavam na rua, jogavam betes no meio
da rua. Nas férias era uma festa, porque a criançada se reunia na casa de um,
na casa de outro, na rua, em um terreno baldio, brincavam em um terreno baldio.
O maior perigo era um poço, que a gente tratava de cuidar se tinha algum poço
abandonado, que era o maior perigo que existia, não havia maldade nem malícia.
As crianças que se criaram aqui tiveram uma infância muito feliz. A gente fazia
piquenique no parque com as crianças. Todas as férias era sagrado, reuníamos as
crianças no parque, levávamos toalhinha, cestinha, era sagrado piquenique no
parque. Então elas tem lembranças memoráveis da infância e da adolescência
passada aqui. E com o tempo essas coisas foram mudando. Veio mais progresso. A
luz caía muito, até hoje não é muito forte. Por que aqui é o fim da linha mesmo,
é o fim da linha da Copel. Então realmente queimava aparelho e coisas assim. A
gente sempre tinha vela porque ficava muito sem luz.
PE –
Aproveitando a sua colocação do parque, sobre essa questão ambiental, comente
um pouco essa sua relação com o parque e esse trabalho que a Associação de
Moradores tem de conscientização da vizinhança, interação com as escolas, com a
sensibilização das pessoas pras questões ambientais.
ZS – Com relação
à AMA São Lourenço, foi na década de 80, começo de 90, que a Dona Iolanda, uma
moradora bem próxima ao Colégio Santa Maria se mobilizou e reuniu os moradores,
porque uma criança tinha sido atropelada na saída do colégio. Então por
questões de trânsito nós nos mobilizamos e resolvemos criar a Associação. E
conseguimos que fosse organizada a saída de forma que as crianças não corressem
risco. E a Associação foi crescendo, a gente foi se envolvendo com várias
questões, principalmente a questão ambiental. E no início dos anos 90 houve o
primeiro Abraço ao Parque. É muito bonito porque as crianças vão se
mobilizando, aprendendo desde pequenas a preservar o meio ambiente: a questão
da água, da despoluição do Rio Belém. Depois a Dona Iolanda, a fundadora, foi
plantar uvas lá no São Francisco. Uma senhora empreendedora que ela era, e
passou a presidência da Associação para o César Paes Leme, que até hoje faz um
grande trabalho, principalmente de conscientização ambiental. Ele teve a sensibilidade
de pegar um desenho de uma criança, que era um carneirinho desenhadinho por
criança dizendo “ui, que cheiro ruim”. E ele fez o folder dessa campanha de
despoluição do Rio Belém e do Abraço ao Parque. Todas as escolas da região
estão mobilizadas na festa do São Lourenço, que é dia 3, 4 e 5 de agosto
geralmente, no dia do São Lourenço. O Santo tem uma história muito bonita e
muito curiosa porque o São Lourenço foi um santo que tentou distribuir os bens
da igreja para os pobres, porque o maior bem da igreja ele achava que era o
povo. E ele foi assado vivo. Inclusive eu trouxe até uma estatuazinha do São
Lourenço lá de Assunção, no Paraguai. Lá eles tem muito esse trabalho de santo,
e ele vem com a parrillita, uma espécie de grelha na mão e o evangelho na outra
mão. Então essa é a história do São Lourenço, história de solidariedade, de
amor. É uma festa muito bonita e eu acho muito bonito isso dos moradores. É uma
coisa antiga, nós sempre nos reunimos aqui na nossa rua. Os moradores antigos
se reuniam com as crianças pequenininhas naquelas noites frias de São João,
faziam uma festa junina em plena rua, uma fogueira enorme. Os homens se
mobilizavam, faziam fogueira, as mulheres faziam todo tipo de quitutes juninos
e as crianças vibravam. Então era uma festa muito bonita que a gente fazia,
reunia todo mundo.
PE – E o
trabalho da conscientização ambiental está em andamento hoje?
ZS – A todo
vapor. Inclusive a Associação fez parcerias, os nossos filhos já participam
hoje também, até mais do que os pais, porque está nas mãos da geração mais
jovem isso. Mas eles atuam com parcerias, com a Secretaria do Meio Ambiente,
com a Sanepar e fazem até essa revisão para que não seja lançado esgoto na galeria
de água fluvial, isso é importantíssimo que não seja lançado. E essa
conscientização com as crianças, que motivam as famílias, é muito importante
também.
PE - Você lembra, tem alguma informação a
respeito dessa área do Parque São Lourenço antes da inauguração dele na década de 70?
ZS – A notícia
que a gente tem, dos moradores mais antigos, é do curtume que era de um senhor
que inclusive morou nessa casa da esquina da João Gava. As pessoas ligadas ao
curtume chegaram a morar ali uma época. Essa casa também foi armazém, foi casa
de mulheres, foi pensão, foi muita coisa.
PE – Afinal de
contas era uma estrada por muito tempo. Inclusive na frente do Colégio Santa
Maria era um matadouro.
ZS – Exato. Nos
fundos do Colégio Santa Maria. Na própria área do colégio, essa parte de trás
da Rua João Gava era matadouro, era fábrica de linguiças, tinha bastante coisas
ligadas. O próprio curtume era do outro lado da rua. Então era tudo interligado
nessa área.
PE – E era
caminho de tropas.
ZS – Caminho de
Tropas. Isso tudo tem a ver com o gado, com as tropas. E é interessante que a gente
encontra, minha filha lida muito com flores, com plantas, no próprio terreno,
na terra, às vezes caquinhos de louça
antiga, coisas que provam que aqui é uma região muito antiga mesmo, uma região
histórica certamente. E as lendas então. As lendas dessa casa são incríveis [sobre
a casa da Mateus Leme na esquina com a João Gava]. Lendas ou não, porque 2,3,
4, 5, 10 moradores contam a mesma história. Essa casa foi pensão e uma senhora
muito idosa que morou aqui na frente da minha casa, moradora muito antiga,
contava que as crianças iam brincar quando a casa ficou fechada, abandonada, e
ouviam barulhos e tudo isso. E muitas pessoas diziam que a casa era assombrada.
E essa senhora contou que realmente em determinada época, quando era pensão, as
pessoas não aguentavam mais os barulhos que surgiam de noite, barulhos
estranhos, vultos e outras coisas. Aí chamaram uma vidente. E essa vidente mandou
fazer uma fumaça por tudo. E ali ela começou a entrar em transe, subiu a escada
dessa casa aqui e foi para o sótão. E lá no sótão ela indicou um local, eles
abriram umas tábuas do sótão e tinha uma camisa ensanguentada. Uma pessoa tinha
sido morta lá. São as histórias que contam. E realmente diz que foi assassinada
uma pessoa, porque era pensão, houve uma briga, uma coisa assim. Então são
coisas que fazem parte da história.
PE – Você
comentou, na sua conversa com a Dona Anastácia, sobre uma charutaria.
ZC – Sim, a Dona
Anastácia Baka é uma mulher exemplar porque ela morou a vida inteira aqui. Eu a
conheci pegando o ônibus, no ponto. No último trabalho dela, ela trabalhava no
cemitério municipal como embelezadora de túmulos. Mantinha certos túmulos pra
certas famílias: limpava, enfeitava com flores. E conversando com ela, ficamos
amigas, a gente se encontrava sempre no ponto de ônibus aqui do Abranches, e
ela foi me contando da vida dela, fui na casa dela várias vezes tomar café,
conversar. Ela me mostrou muitas coisas que ela tinha. E a vida dela foi assim,
ela se apaixonou por um bugre, quando era mocinha e morava com a família
naquela casa. E fugiu com esse bugre. Ele era domador de cavalos, ela até me
mostrou uma foto dele com o cavalo impinado. Um rapaz moreno, bonito, parecia
um personagem de novela. E ela fugiu com ele. O pai nunca mais deixou ela ter
contato com a família, ela foi banida da família. Então ela teve que lutar e
trabalhou com tudo o que você possa imaginar, inclusive numa charutaria da Rua
Mateus Leme, embrulhando charuto. Também aqui ela juntava ossos das carcaças de
boi e vendia pra fábrica de ração. E depois ela foi como empregada doméstica
para o Rio de Janeiro com uma família muito bem de vida, ela foi muito bem
tratada pela família e chegou até a cantar na Rádio Nacional do Rio de Janeiro,
a dona Anastácia. Na época eu trabalhava no Conselho da Comissão Feminina e a
gente estava em busca de uma mulher para homenagear pelo ano 2000, e sugeri que
a homenageassem. E ela foi homenageada pela Assembleia Legislativa, recebeu uma
comenda do governador como mulher do ano 2000. Acho que foi um mérito imenso que
ela tinha mesmo, ela mereceu.
PE – Tem dois
assuntos com lacunas, eu gostaria que você me ajudasse. Um deles é essa relação
com a Colônia do Abranches. Por exemplo, hoje a gente tem ali algumas
estruturas que são remanescentes da Colônia, como o colégio, a igreja, o
cemitério e a Associação, o clube.
ZS – Sim, isso
tudo certamente integrado quando foi fundado. Agora, o que é muito
interessante, logo que a gente se mudou pra cá, nós estávamos fazendo essas
faxinas, quando a casa acaba de ser construída. Eu estava limpando vidro com a
minha diarista, fazendo faxina aqui. De repente eu vejo um padre lá embaixo.
Era começo de ano, e o padre vestido com aquela roupa de padre. E eu disse pra
minha diarista: “puxa, será que morreu alguém?”, ao que ela, que também morava
no Abranches, disse que não, era costume do padre no começo do ano abençoar as
casas. Não sabia disso, achei muito curioso. E de repente ele bateu aqui e
pediu se queria abençoar a casa e eu disse que queria. Então ele vinha com água
benta e todo começo de ano fazia oração, visitava as famílias de cada casa.
Então era uma integração muito grande da igreja. Até hoje nós temos moradoras
antigas aqui da rua que tem aquela capelinha que vai de casa em casa, ficando
uns dias em uma casa e depois passa pra outra, reza, entrega na outra casa. E
tem as festas da igreja. Tem os bingos, que eles fritam pastel e cantam bingo
dentro do salão da igreja. E o salão da igreja se prestou a um projeto que a
gente iniciou nos anos 90 com o padre Dirceu, hoje já falecido. Era um padre
muito simpático, muito evoluído, e tendo em vista que os jovens estavam
começando as pichações aqui pela região, começaram a aparecer muitas pichações
em muros e fachadas, a Associação AMA São Lourenço se mobilizou, e como havia
muitas pessoas da Associação, inclusive policiais que sabiam quem eram os
pichadores, alguns eram filhos de pessoas conhecidas, outros não tanto. Então
resolvemos fazer um projeto de grafitagem, chamando esses jovens para
exercitarem a grafitagem em vez da pichação. E que jovens talentosíssimos! O
padre Dirceu cedeu o estacionamento do seu fusquinha para reunir os jovens, o
comércio local dava lanche para esses jovens, possibilitado pela mobilização da
Associação. Então os jovens passavam o sábado fazendo grafitagem e assim eles
receberam muitos contratos, receberam dinheiro pra fazer vários muros de vários
estabelecimentos comerciais, de várias residências, e foram revelados talentos
preciosos, de jovens que desenhavam super bem naturalmente. Depois a Fundação
Cultural, se não me engano, implantou esse projeto.
(A entrevistada
mostra fotos da primeira reunião com o Padre Dirceu, do primeiro Abraço ao
parque São Lourenço, de uma casa muito antiga que foi demolida e depois da Dona
Anastácia Baka.)
ZS – Foi na
segunda festa do São Lourenço que tivemos o primeiro Abraço ao Parque. Não
tinham tantas escolas ainda, depois vieram todos os colégios públicos e
particulares da região. São muitas escolas por aqui.
PE – Eu tenho
uma pergunta referente ao meu segundo ponto, que eu acho que você pode me
ajudar. Um ponto que nós estamos pesquisando, é essa vocação que a Rua Mateus
Leme tem que refere-se aos restaurantes. O que você pode falar sobre eles?
ZS – Muito
antigos, veja você. O Ervin é antiquíssimo, porque era sorveteria. A sorveteria
do Ervin é antiquíssima, anterior ao restaurante. O ônibus só ia até o Rei do
Camarão. Então aquele nucleozinho realmente tinha que ter uma área
gastronômica, porque depois as pessoas não tinham mais recursos. Quem vinha pra
cá, ou vinha de bicicleta, ou a pé, ou alguém ia buscar, porque o ponto final
era ali no Rei do Camarão. Então muitas pessoas cujos filhos estudavam a noite,
contam que se passasse de determinada hora, se não pegasse o ônibus, tinha que
dormir na praça, literalmente, na Praça Tiradentes. Então eles tinham que sair
um pouco antes da aula porque não tinha mais ônibus.
PE – Que ônibus
eram?
ZS – Abranches,
Vila Suíça, Taboão e o Mateus Leme. São esses quatro ônibus que vem pra cá
hoje. O mais antigo é o Abranches.
PE – Tem mais alguma
coisa que você gostaria de falar?
ZS – A história
dessa solidariedade, porque a gente muda o nosso jeito de viver. Eu morei
sempre no centro, na Rua Augusto Stellfeld, Presidente de Morais, onde hoje é a
Batel. Uma época eu tive a oportunidade de voltar a morar lá, mas eu não me
acostumei mais, porque quando eu vim pra cá, era um silêncio, e as crianças se
criaram em uma paz, um sossego, que você acordava e escutava uma torneira
pingando, de tão quieto, tão maravilhosamente silencioso que era o bairro. Hoje
não é mais tanto, mas já foi um dia. E essa solidariedade dos moradores
antigos, essa coisa tão bonita da vida na colônia, que parecia que eu morava em
outro país. Se uma criança ficava doente, todo mudo da rua corria. É a coisa
mais linda de você ver. Um trazia uma erva, outro trazia um remédio, outro
fazia um benzimento pra fazer uma oração. Se alguém passava mal, quem tinha carro
levava correndo para o hospital, independente de que hora fosse. É uma
solidariedade tão bonita que a gente não vê mais hoje em dia. Eu me lembro que uma
vez uma vizinha veio cuidar de mim, porque o meu marido sempre viajou muito, e
eu sempre fiquei muito sozinha. E ela veio cuidar de mim, ela me trouxe um chá
de erva de pichilin com noz-moscada. Outra trouxe arroz doce, que era pra ter
leite pra criança. Então elas cuidavam da gente. E uma vez um senhor veio
arrumar a caixa d’água e uma vizinha imediatamente disse: “Zélia, tem uma
pessoa no teu telhado”. Então eu digo, um cuidava do outro, porque sabiam que a
gente ficava muito sozinha. Várias vezes eu ouvi barulho à noite, e aprendi a
atirar com arma de chumbinho, porque ficava muito sozinha. E eu ouvi barulho a
noite, parecia exatamente uma pessoa no telhado tentando entrar. E eu fui
espreitando, espreitando, a gente tinha instalado várias luzes do lado de fora
da casa, e de repente quando eu vi, era uma raposa. Até hoje tem muito dessas
raposas do mato. Aquela estava cheia de filhotinhos, tinha feito um ninho no
telhado da minha casa. Uma vez, em uma festa de casamento na Igreja de Santana
do Abranches, de uma filha de uma vizinha aqui da colônia, e de repente surge
uma raposa e começa a correr pelo meio dos pratos. Essas coisas não se acredita
que ainda existam. E tem as aves, passarinhos de todo tipo que possa imaginar.
Tem aves maravilhosas, até hoje.
PE – E o Clube
Recreativo, a Sociedade Abranches?
ZS – Bem, tinha
uma família em que ele foi presidente, ele morava aqui no fim da nossa rua, mas
a gente não teve mais contato. Era família Gulin. O último contato que a gente
teve com relação à Sociedade, era esse senhor que fez as piscinas, ampliou
bastante. Era uma família muito simpática. Todos os anos os filhos distribuíam
folhinha pela rua, calendário pra toda a vizinhança. Era um casal muito bom.
Depois eles perderam o filho em um acidente de moto e foram embora daqui. A
gente não teve mais contato.
PE – Um ponto
que me chama atenção é questão da colônia quando ela foi portuguesa. Hoje está
muito escondida essa história.
ZS – É muito
interessante se você puder falar aqui nesse Armazém do Baço, subindo a João
Gava, depois que passa a Ópera de Arame. É muito antigo, e eles têm um
quadrinho no caixa do Armazém dessa região quando era dos portugueses. E essa
igreja é herança. Tem uma igrejinha ali do lado do bairro.
PE – Vou te
trazer uma história pra ilustrar, pra você colocar do lado da história da
Anastácia, do bugre. A Mateus Leme tem um personagem que recebeu terras na
região pra povoar. Contam as histórias privadas da vida dele, que ele não
constituiu uma família oficial, que ele teve muita relação com as índias.
ZS – Olha, isso
aí bate, porque eu estou pesquisando Domingos Virgílio do Nascimento, autor do
hino do Paraná. Foi militar, jornalista, deixou vários livros, fez um
levantamento de todo o potencial energético do Paraná. Ele era candidato do
Governo do Estado no comecinho do século XX.
(a entrevistada
mostra uma fotografia do irmão de Domingos Nascimento, Manoel Augustinho com a
família, sinhá França e aponta para uma aquarela com o Solar do Rosário)
ZS – A sinhá França
é aquele fantasma que aparece na janela do Solar do Rosário. Ela casou com o
meu bisavô. Então é assim, ele o Manoel Augustinho do Nascimento, irmão do
Domingos Nascimento, autor do Hino do Paraná. O Manuel Augustinho era vinte
anos mais velho do que o Domingos Nascimento. E ele negociava com tropeiros,
pra você ver como faz sentido. E agora eu fui descobrir no Arquivo Público do
Paraná, que o Domingos Nascimento. Olha Aqui: nomeação nº 8 de outubro de 1895,
o governador do Estado do Paraná, José Pereira Santos Andrade, o da Praça
Santos Andrade, através do engenheiro civil Cândido Ferreira de Abreu, o da Rua
Cândido de Abreu, nomeia Domingos Virgílio do Nascimento, que é o Domingos
Nascimento, fiscal geral de serviço de conservação das estradas do Estado para
o Assungui. Ele foi fiscal de serviços para a construção da estrada, pode um
negócio desse? E agora, dia 31 de maio, faz 150 anos do nascimento do Domingos
Nascimento. Um personagem importantíssimo da história, pouco conhecido. E ele
era lá de Guaraqueçaba. O irmão do Domingos Nascimento, que é o meu bisavô,
casou com a Sinhá França. A sinhá França é loira, alta, de olho azul, minha
bisavó. Ele via ela chegar de carruagem, aqueles trollerbus que tinha na
catedral, e o Manuel Augustinho, irmão do Domingos Nascimento, tinham uma loja
ali no Paço, onde ele vendia coisas pra tropeiros. Arreios, essas coisas todas.
Porque ele negociava muito com Sorocaba. Então tem toda ligação. Acontece que a
mãe deles, era uma índia, e ela é Martins. A Sinhá França é Martins, Martins do
Nascimento, o sobrenome deles. Então, dizem que tem a ver com o Mateus Leme,
porque o Mateus Leme era Mateus Martins Leme. E essa índia, que era a mãe do
Domingos Nascimento e do Manoel Augustinho, ela casou, ou foi pegada a laço,
não sei, com o Nascimento, quando ele tinha uns treze, quatorze anos de idade.
E com dezoito, ela ficou completamente cega. E ela viveu até noventa e tantos
anos. Então tem índio na família, realmente. Talvez tenha a ver mesmo com essa
história do Mateus Leme. Eu fiz o levantamento de todas as filhas do Domingo
Nascimento, até um parente dele de Porto Alegre esteve aqui esses dias, um neto
dele. Estou tentando recompor essa história, que não é muito fácil. Mas tem a
ver com tropeiros, com tudo. Agora, ele construir a estrada do Assungui, você
veja.
PE – Um dos
trabalhos dele foi então fiscal da construção da estrada do Assungui.
ZS – Isso,
exatamente. Irmão do meu bisavô. Esse da estrada do Assungui ninguém sabe, eu
fui descobrir ontem. Alguém do centro de Letras fez um livrinho sobre o
Domingos Nascimento, uma moça fez um trabalho recente de pós-graduação,
mestrado, mas ninguém citou isso, porque eu fui achar isso por acaso em um
documento ontem.
PE – Esse
conjunto, que a gente chama de São Lourenço, nos marcou por o ponto da rua Mateus
Leme com a João Gava, porque ali é a antiga estrada das pedreiras, de pegar
pedras nas pedreiras.
ZS – Quando a
gente mudou pra cá, a gente ouvia muita explosão, tremia tudo aqui, ainda
estavam ativas as pedreiras quando nós viemos no final dos anos 70, começo dos
anos 80. (...) Agora aqui tem muita tradição antiga, como por exemplo, o Corpus
Christi, onde ainda fazem aquele tapete, bem na igreja do Abranches, essa
região entre o colégio e a igreja. São feitos aqueles tapetes de flores. Tem
muita tradição antiga.
PE - Com relação
aos restaurantes, eu vejo a vocação gastronômica, naquele trecho, não na Mateus
Leme inteira. Você frequenta algum desses restaurantes na Rua Mateus Leme?
ZS – Sim, o
Ervin, com certeza, a gente frequenta. Quando tinha aqui na esquina uma
confeitaria, a gente adorava. Essa Vila Ricci foi uma confeitaria muito boa,
depois tentaram fazer restaurante, mas não deu. Mas também tem o antigo bar do
Victor, de frutos do mar, que virou nossa praia. Os restaurantes de frutos do
mar vieram todos pra cá. Eu acho que é uma vocação grande.
(FINAL)
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