Entrevista com a empresária Vilma Ofner, filha de Ervin e Adelaide Ofner, fundadores da tradicional Churrascaria Ervin que funciona desde 1950 na Rua Mateus Leme.
TRANSCRIÇÃO
Entrevista
concedida por Vilma Ofner à equipe da Pesquisa
Caminhos Históricos de Curitiba: A Estrada do Assungui, na sede da
Churrascaria Ervin em Curitiba, no dia 13 de março de 2012.
LEGENDA: PE – Pesquisadores
VO – Vilma Ofner
VO – Sou filha
de Adelaide Ofner e Ervin Ofner. Foram eles que começaram, primeiramente em uma
casa próxima aqui, com bar e sorveteria. Meu pai comprou esse terreno por
indicação de um amigo e construiu esse prédio, que também era bar e sorveteria.
Poucos anos após, como tinha muitas oficinas, marcenaria, o curtume dos Pilati,
o curtume dos Boutin lá na Abranches, e os carroceiros que vinham do Abranches
e daquelas localidades, traziam suas verduras pra vender no centro e passavam por
aqui na hora do almoço. E também os caminhoneiros que traziam a cal e o cimento
de Rio Branco paravam aqui pra comer sanduíche. E meu pai, modéstia a parte,
sempre foi mão aberta, ele tinha pena dos clientes dele e fazia sanduiches bem
recheados. Um dia a minha mãe disse: “Ervin, coitados desses homens, passam o
dia todo trabalhando a custa de sanduiche. Por que a gente não faz um almoço
pra eles?”. Então, resolveram, começaram a fazer, a gente chamava na ocasião
“sortido”, e acho que era o único em toda a Mateus Leme que tinha um local pra
comer comida caseira. Então chegou alguém que conhecia meu pai, porque o bar
era mais seletivo e pediu: “por que ele não fazia um risoto, um frango?”. Daí
ele e minha mãe resolveram fazer. E assim foram por anos, mas era só sob
encomenda. E nesse meio tempo, ele começou a fazer churrasco. Quando eu me
casei, eles até tentaram continuar fazendo o risoto, só que não aguentaram,
acabaram com o risoto e ficaram só com a churrascaria. No final de semana eles
trabalhavam, depois só no domingo, e quando eu e meu filho Cláudio assumimos,
voltamos a trabalhar na quarta-feira, na sexta, no sábado e no domingo. Mas foi
por menos de um ano. A gente assumiu a churrascaria em março e ele faleceu
primeiro de dezembro. Eu sempre achava que eu ia ajudá-lo. Ele estava noivo, a
noiva dele também trabalhava aqui, quando eu vi que não, foi ele que ficou mais
esses meses pra me ajudar. O meu marido queria que acabasse com tudo:
devolvesse pro avô e fim de história. Mas a noiva dele e meus outros filhos disseram
“não, vamos continuar”, ele adorava isso aqui, desde os oito anos que ele
trabalhava, que ele vinha ajudar o avô. Ele era tão pequeno, que não conseguia
abrir uma garrafa, então os fregueses seguravam a garrafa pra ele poder abrir a
garrafa. E hoje eu já me retirei, e os dois outros filhos que tomam conta. Sobre
a Mateus Leme em si, o que eu tenho a contar. Do curtume dos Pilati, que quando
entrou a época dos couros sintéticos, ele acabou indo à falência. O curtume dos
Boutin também. Lembro que meu pai falava muito de um matadouro que tinha aqui
perto.
PE – Então o
comércio, restaurantes, no início não havia?
VO – Não, não
havia. Anos depois veio o Bar do Victor, mas sorveteria no bairro era só essa
também. Bar e sorveteria.
PE – Você tem
alguma lembrança antiga da Rua Mateus Leme, e como você vê a rua hoje? Mudou
muito?
VO – Nós
tínhamos um posto aqui ao lado. Mas não era nosso, meu pai cedeu para um
parente dele. O asfalto terminava bem ali. Passou o posto, terminava o asfalto.
Eu e minhas amigas vizinhas da região brincávamos muito nessa esquina, de bola,
de caçador, porque eram mínimos os carros que passavam. Às vezes em dia de
semana tinha mais carroças do que carro propriamente dito. O que tinham eram os
ônibus, mas também era de tempo em tempo. Então foi uma infância e uma juventude
muito gratificante, muito feliz. A gente brincou muito. Era um asfalto bom, mas
a poeira dali em diante... então em tempos secos como está tendo, meu pai
levantava toda manhã, tinha a mangueira, nós temos um poço, ele molhava toda a
volta aqui. E aqui pra cima, quando eu era menina, tinha o cassino do Ahú.
Então ele molhava tudo, lavava as calçadas, lavava os vidros diariamente e
molhava toda a rua. Mas isso dava umas duas horas. Assim que ficasse um movimento
mais fraco, ele pegava a mangueira e ia molhar novamente, porque a poeira era
demais. No verão, além da poeira, tinha o cheiro dos curtumes, porque o Rio
Belém passa aqui embaixo. E despejavam tudo no rio. Então durante a semana no
verão, tinha que fechar as janelas, fechar os vidros. Minha mãe punha panos nas
frestas das janelas, porque o pó e o cheiro eram insuportáveis. Já no domingo,
os dois curtumes não estavam trabalhando, a água ficava limpinha, a gente
construiu até uma balsa pra atravessar o rio, ele passava bem aqui e a gente
atravessava o rio de balsa, construída por nós mesmas. Então foi muito boa a
infância e a juventude, porque eu morei aqui até casar.
PE – A sua casa
era aqui do lado?
VO – O bar e a
sorveteria era só nesse espaço. Ali onde é a entrada era o quarto dos meus
pais, meu quarto e o quarto da minha irmã, a cozinha da minha mãe, a
churrasqueira era uma só e a parte de lá não existia ainda. Tinha um
quintalzinho com grama, tinha um galinheiro, meu pai tinha um viveiro cheio de
pássaros, que era nos fundos do posto. Sobre a vizinhança, éramos todos amigos
de viajar junto, de passear junto. Tinha a Dona Elvira e o Seu Chico aqui da
esquina, com as quatro filhas. Na outra esquina também tinha um outro senhor
com duas filhas. Mais pra baixo tinha outras meninas. Então a gente brincava
muito, éramos muito unidas. A gente pegava o ônibus e conhecia todo mundo que
estava dentro do ônibus. Era muito bom viver naquela época. Não tinha perigo, a
gente andava de bicicleta aqui na Mateus Leme. Em uma ocasião, duas amigas e eu
estávamos bem lá no começo do asfalto, naquela época terminava o paralelepípedo
e começava o asfalto, lá perto do cartório. Estávamos lá as três, andando uma
do lado da outra. Veio um ônibus de Rio Branco e atropelou uma das minhas
amigas. Só quebrou a perna, mas foi um grande susto. Ali a gente aprendeu que
não poderia andar três bicicletas numa rua que tinha movimento. O máximo que a
gente ia era até o cartório. Pra lá no Centro Cívico tinha mais movimento, a
gente não ia. Andávamos muito nessa rua lateral aqui, que era estreitinha, de
asfalto.
PE – A senhora
vivenciou a época que abriram a chamada estrada do Assungui?
VO – Não, já era
Mateus Leme. Mas meu pai sempre falava da Rua do Assungui. O meu pai não era do
bairro, ele morava no centro. Ele conheceu minha mãe que tinha uma chacrinha,
com meus nonos, aqui na Albano Reis. Meus nonos tinham cinco filhas, cada filha
ganhou um terreno, eles casaram e ficaram morando ali. Foi aí que meu pai
participou da vida no bairro, da Mateus Leme. E ele cresceu, não digo em
riqueza, mas em nome. Porque
tinha outros bares, aqui na esquina tinha o armazém do Seu Chico, era seu
Francisco Walter. Então vendia milho, feijão, arroz, batatinha, tomate, tinha
um pouco de tudo. Mais lá pra baixo tinha o Lívio, tinha o Lolinho, que eram
armazéns, porque naquela época não existia supermercado. Tinha também uma
lojinha onde é esse hospital, tinha uma lojinha na esquina, pequena, de
aviamentos. Eu não me lembro de lojas. Meu pai falava das ferrarias, era aqui
mais adiante, eu não vivenciei. Eu lembro do tanque, não era parque ainda. Eu
lembro que morreu muita gente afogada, porque chagavam aqui e contavam pro meu
pai, muitas vezes eu escutava porque estava por aqui. Pescavam muito no tanque.
É isso que eu tenho lembrança do Parque São Lourenço.
PE – Sobre a
história da balsa, vocês entravam no rio, atravessavam ele?
VO – Não a gente
não entrava. A gente só entrava se caía dentro, a gente não entrava porque
sabia que não podia entrar. Teve uma das minhas amigas, filha do vizinho aqui, e
tinha umas árvores grandes, frondosas, e a gente fez uma balança que passava
por cima do rio. Uma vez, ela prontinha pra ir em um aniversário, de vestidinho
engomado, sapatinho branco, aquela coisa que se usava antigamente, cheia de
anáguas, foi se balançar, a corda arrebentou e ela caiu dentro do rio. Então
imagine a cena, uma vídeo cacetada daquelas. Nem sei se acabou indo no
aniversário, só sei que acontecia isso e todo mundo zarpava, saía de perto. Meu
pai contava também que quando eles eram recém-casados, ele ainda trabalhava na
Metal Gráfica, ele era desenhista. E ali na Albano Reis, era barro puro, quando
chovia, ninguém passava. Tinha que levar um par de sapatos, deixava na esquina,
atrás de uma moita, alguma coisa assim, e vestir um calçado limpo pra ir
trabalhar. Aí uma vez meu pai resolveu conversar com os vizinhos, eram todos
conhecidos, pra comprar pedras. Então ele fez um caminho com pedras desde a
Mateus Leme até a casa dele. Meu pai tinha uma visão pra época muito adiantada.
Uma vez, quando a rua já estava um pouco melhor, ele foi de bicicleta. Daí ele ficava
se virando e dando tchau pra minha mãe. Minha mãe estava no portão, ele dando
tchau e pedalando. Teve um dia que ele errou a ponte, que era uma ponte de madeira
estreitinha, e acabou caindo no Rio Belém. Ai levou aquele banho. Quando minha
mãe vê, ele estava em casa, encharcado. E trabalhavam de terno. Então ele tinha
muitas histórias. Uma outra vez quando eu era menina, se chovia muito, dava
enchente ali. Mas aquela água bem limpinha. Daí toda a piazada ia lá pra ver a
cheia do Rio Belém. E um primo meu foi, só que pegou o sapato do meu nono. Foi
ver a enchente com o sapato do meu nono. Então adivinhe. E ele morava com o meu
nono e minha nona. Levou aquela bronca e eles tinham um único par de sapatos, e
meu avô queria pegar ele a força. Eu só sei que ele veio passar uns dias aqui.
Ele ficou morando com a gente por causa dos sapatos que ele pegou pra ir ver a
enchente. Então tem essas histórias e outras tantas que a gente não lembra. Quando
meu pai namorava, ele conta que ele saia da Albano Reis e ia a pé pra casa. Ele
morava na Praça Dezenove nessa época. Ele ía a noite, dez horas da noite, uma
escuridão total. Quando ele chegou ali na Igreja do Divino, só que não existia
a Igreja do Divino na época, era mato, ele estava passando, só que ele morria
de medo. Não sei do que ele tinha medo aquela época, se era de boitatá, vai
saber. E ele escutou um barulho, uns olhos no escuro e um barulho estranho. Ele
pegou e zarpou. No dia seguinte, que ele veio novamente namorar, mas veio de
dia, ele viu que era o cavalo que ficava ali. O cavalo relinchou e ele “pernas
pra que te quero”, morrendo de medo. Então tem essas histórias da Mateus Leme.
PE – A senhora
comentou, e eu tinha visto também no site do restaurante, a história do seu
pai, que era desenhista. Ele largou a profissão pra montar um negócio, como foi?
VO – Eles
começaram vizinhos daqui, duas casas pra lá, começaram com bar e sorveteria.
Puseram a casa onde eles moravam de aluguel pra tentar. O meu pai dizia assim
pra minha mãe, com aquele sotaque alemão forte: “você passa o dia encerando
essa casa. Que tal se em vez de gastar dinheiro e cera, a gente abrisse alguma
coisa?”. Ele não estava muito satisfeito com o que ele estava ganhando no
emprego. E naquela época não se podia nem comer. Não se tinha horário pra fazer
lanche, nada. Então eles contam que tinha na gaveta da mesa deles o pão que
eles levavam e comiam escondido do patrão. Deus o livre se o patrão pegasse.
Então era muito difícil e ele queria se ver livre disso. Daí alugaram primeiro
naquela esquina ali e fizeram um barzinho mais simples, mais um botequinho. Daí
ele resolveu vir pra frente, bem em frente do imóvel daqui, alugado. Ali a
gente ficou, não sei se dois anos, porque eu lembro vagamente. Só que quem
alugou pra ele era uma pessoa muito difícil de lidar. A esposa dele era um
amor, mas ele era difícil. Então com o bar e sorveteria, minha mãe fazia
sorvete, eles faziam o picolé e tinham os meninos, com carinho, que saíam
vendendo, porque na época ainda tinha o cassino. Só que o dono da casa, a água
era tirada na casa dele, ele que tinha que ligar a bomba. Aí cada vez, meu pai
tinha que ir lá pedir pra ligar a bomba. E às vezes o homem já estava dormindo.
E meu pai precisava de água, mas não queria incomodar. Mas como ele ia fazer os
sorvetes sem água? Aí um senhor que vendia a Manteiga Ouro, estava ali uma vez
e disse: “Ervin, tem esse terreno da esquina à venda, porque você não compra?”.
E meu pai disse: “Mas como eu vou comprar um terreno desse, eu não tenho
dinheiro”. “Não, mas vai atrás”. E deu o endereço da dona do terreno, porque
ele conhecia. E meu pai foi na cara e na coragem. Daí eles disse “olha, eu não
tenho dinheiro, eu vou tentar fazer um empréstimo”. Mas ele tinha a casa dele
que ele podia vender e dar um sinal. E ela aceitou na confiança, no fio do
bigode, como ele dizia. Ela que deu um empurrão pra vida dele, porque na
confiança ela vendeu esse terreno. Mas ele precisava construir, não tinha nada em cima. Então ele não
podia dar todo o dinheiro da casa porque ele tinha que construir aqui. Então ele
ficou com uma parte, fez um empréstimo na Caixa Econômica, construiu, começou a
trabalhar e a pagar a benfeitora da vida dele. Foi sofrido, difícil, mas nada é
fácil na vida. E a minha mãe teve um problema, teve que fazer uma cirurgia
muito grande e o médico disse que nunca
mais ela ia poder ficar em frente de um fogão, que não podia fazer esforço. E
daí? Eles com dívida, pra vinte anos, eu me lembro bem, sorte que não tinha
inflação naquela época, e minha mãe não podia trabalhar. Então eles arrendaram
pra um amigo que veio pra cá com a família, nós fomos morar numa casa aqui pra
cima, depois passamos pra casa de quem tinha arrendado. Mas a mulher de quem
tinha arrendado não deu conta e eles devolveram. Foi a sorte. Nesse meio tempo,
meu pai já tinha saído do emprego. O que ele ia fazer? Eu lembro que ele tinha
um renault antigo que ele mandou reformar, ficou uma caminhonetinha, e ele saía
para Santa felicidade, pra esses bairros mais distantes pra vender bolacha,
bala, mas não foi por muito tempo. Com a devolução, minha mãe começou e nunca
mais saiu da frente do fogão. E está viva até hoje, com 95 anos. E foi uma vida
de trabalho intenso, muito intenso, não se tinha funcionários, éramos só nós
três. Minha irmã tratou de cassar cedo pra se ver livre, porque ela não
gostava, nunca gostou. E eu sempre gostei muito. Então eu sempre estive ao lado
deles, eu estudava, eu trabalhava, a gente trabalhava em equipe nós três.
Então, deu certo. E com esses exemplos, meus filhos viram, sempre gostaram, e
quando foi preciso eles foram se encaminhando até uns cinco anos atrás, que eu
disse “agora são vocês, eu vou cuidar da minha mãe, e vocês se virem”.
PE – E sobre os
clientes antigos, você lembra de algum fato marcante?
VO – Antigamente
não existia cheque, ninguém pagava com cheque, era com dinheiro. Quando
começaram os primeiros cheques, minha mãe tinha cadernos, e ela anotava o nome,
a data e o banco. Então nós temos vários cadernos, tudo anotadinho. E um dos
primeiros clientes de cheque foi o Ademar Andrade. Até tenho uma foto ali. A
primeira firma que ele fez a contabilidade foi a do meu pai. Então ele sempre
dizia isso: “teu pai foi meu primeiro cliente”. E a família do seu Henrique,
que é casado com a irmã do Jaime Lerner. Então dos primeiros cheques mais
conhecidos foram deles, em 1972.
PE – E o
restaurante se manteve sempre aberto, nunca fechou...
VO – Sim, ele
diminuiu os dias. Mas depois que meu filho faleceu, a gente respirou e abriu
mais vezes, abrimos quarta-feira e sexta à noite, sábado e domingo no almoço,
até que quando os meninos se entrosaram bem, começaram a abrir durante o dia,
de terça a domingo. Quando o Guilherme teve a primeira filha, ele disse que não
ia mais abrir a noite, porque não compensava, as vezes dava movimento, as vezes
não. Porque o pessoal da noite já prefere um local que tenha música, e aqui
não. Então eram mais famílias mesmo. E corre-se muito risco nessa Mateus Leme.
Corre-se em qualquer lugar, mas aqui ele pôs um pé pra dentro, está em frente
do caixa. E eles ficaram com medo e fecharam. E não se arrependem. Graças a
deus, o movimento está aumentando, veio a OAB pra cá, daí abriu o Mannus. A
gente achou que ia interferir, mas não interferiu em nada, porque é
completamente diferente também.
PE – Teve até um
movimento de redes gastronômicas, e tem essa vocação. Tem até um slogan pra
quem vende frutos do mar, a Rua da Praia.
VO – É, eu fui em
duas reuniões, que foi lá no Bavarium, quando era aquela cervejaria. Foram
feitas lá duas reuniões pra mudar o nome da Rua, para Rua da Praia, mas não deu
certo. A reunião era de todos os restaurantes da Mateus Leme, mas não sei se
mudou a prefeitura, não sei o que houve que não foi adiante. Mas já estava bem
adiantado todos o estudo, com iam ser as calçadas com mesinhas, com tem agora,
mas na época não tinha nenhuma. E tinha uma estearina...
PE – A estearina
Paranaense onde hoje é o Bosque do Papa. Conta um pouco pra gente sobre a
estearina.
VO – Eu lembro
da estearina porque no sábado e domingo a gente ia andar de bicicleta naquela
ruazinha. Tinha uma ruazinha bem estreita, nem sei se existe ainda, mas
asfaltada e descida. Então era o paraíso, não tinha carro, ninguém entrava,
porque só ia pra estearina e nós podíamos andar de bicicleta à vontade. Da
Estearina eu lembro bem, mas nunca entrei, não sei como funcionava, acho que
eram só velas que eles faziam. O que tinha também, que era da minha época era o
Cruzeirinho, a Sociedade Cruzeiro. Haviam muitos bailes, bailes muito bons, bem
família. Passando o cartório do Taboão, essa Sociedade era na terceira casa, do
lado direito. E meus pais sempre iam ao baile, baile de Réveillon, Páscoa,
Carnaval. E adiante, não estou muito lembrada se tinha comércio. Se tinha, era
bem pouco. Tinha muito cavalo, muita carroça. Teve uma época que tinha o Cosme
e Damião, toda noite eles passavam. Era legal, a gente deitava e escutava um
tec, tec, tec dos cavalos. Seria muito legal se existisse isso ainda hoje pra
dar um pouquinho de segurança pra gente. Eram dois sodados a cavalo, eles
ficavam a noite andando pelas ruas e cuidando.
PE – A senhora
tem um fechamento, uma lembrança que a senhora gostaria de deixar registrada,
tanto do restaurante, quanto da rua?
VO – Quanto à
rua, é muito triste atravessar essa rua. Eu até evito. Agora sem sinal, nem sei
como que... mas tem sinal ainda, eles tiraram só a ilha do meio. A ilha, para o
pedestre, era uma segurança. Pra mim, era uma segurança. Desde que tiraram eu
não atravessei mais sozinha. Mas foi bom, porque assim os carros não param e
não levantam a poeira que levantavam e a poluição. Eles paravam e tinham que
arrancar...isso melhorou. Agora, é preciso de muitas melhorias. De calçamento,
essas calçadas medonhas...então teria que ter uma renovação. Além do trânsito. Quanto
à churrascaria, eu fico muito feliz com os cliente novos, muita gente que eu
não conheço, eu quase não venho aqui, mas quando eu venho eu já não conheço
mais ninguém. Todos clientes novos, até porque os mais antigos já morreram. E
fico feliz que meus filhos estão dando conta, são responsáveis e estão levando
pra frente. Eu tenho muito orgulho da churrascaria, eu sempre tive muito
orgulho do meu pai e da minha mãe, porque eles foram pais presentes, pais trabalhadores.
E eu sempre digo, meu pai pode se contar aonde ele estiver, é uma pessoa muito
feliz. Ele teve uma esposa batalhadora, a esposa, na concepção da palavra, a
companheira. E foi um casamento como todo casamento deveria ser. Ele velhinho,
ele morava no prédio onde eu morava também, quando ele entrava com o carro na
garagem, minha mãe estava na janela, ela saia e ia abrir a porta do elevador,
eles se davam beijinho. Quando ele saia, a mesma coisa. Ela ficava olhando ele
sair do portão afora. Então eu vejo que foi um casamento muito bom, casamento
na concepção da palavra mesmo, 64 anos, e sempre trabalhando juntos. Porque, de
solteira, quando ela trabalhava, trabalhava também com ele, foi onde eles se
encontraram. Toda a vida ela trabalhou junto. Às vezes ela se cansava, porque
trabalhar com marido não é fácil, mas ali junto. E eu fico feliz, porque eu amo
muito isso aqui, gosto muito de trabalhar aqui. Às vezes sinto muitas saudades
de vir trabalhar. Gosto muito da equipe, que é uma equipe antiga, é uma equipe
boa, e estou muito feliz porque eu consegui passar isso pro meus filhos. Espero
que vá até os cem anos de Churrascaria Ervin tranquilamente. Tanto que eu tenho
uma neta de 12 anos e volta e meia ela diz: “eu vou trabalhar na Churrascaria”.
Então acho que é por aí, porque são tão poucas as empresas que sobrevivem,
ainda mais nesse ramo, não é fácil. Eu escutei muito a minha mãe dizer: “eu não
quero essa profissão pras minhas filhas”. Tanto que a minha irmã saiu o quanto
antes. Agora, eu amo isso aqui tudo. E acho que consegui passar isso pros meus
filhos. Eu noto que eles trabalham com amor. Outra coisa, a gente nunca visou
lucro. Isso eu aprendi com meu pai. Querer agradar, querer fazer o melhor pro
teu cliente. O lucro vem por consequência. E isso é o que digo para os jovens
que estão começando algum trabalho, algum ramo no negócio, qualquer coisa, você
se jogue de cabeça e não pense no lucro. O lucro vem por conseqüência. Também
não faz corpo mole, não adianta, quem faz corpo mole não vai pra frente. Tem
muita gente que abre, põe um gerente e PT saudações, depois passam uns meses e está
lá: sob nova direção. Quem se envolve em um ramo de restaurante, de
panificadora ou qualquer outro que mexa com alimentação, é complicado,
trabalhoso, por causa da higiene. Você está trabalhando com vidas. Por isso eu
sempre gostei de trabalhar mais com mulheres. As mulheres são mais higiênicas,
entendem mais o recado. Eu nunca precisei discutir com mulher nenhuma e
perguntar por que não lavou a mão. Com homem eu sempre ficava com o pé atrás.
Tanto que eles saíam e eu ia ver se a escova estava molhada. Homem é homem. Mas
precisa de homem pra fazer força. Empilhar os engradados, as panelas de carne,
assar, mas na cozinha, na parte de alimentação tem que ser mulheres. (...) Meu
pai tinha muitas histórias. Ele gostava de contar as histórias, porque ele veio
com três anos da Alemanha na época da Guerra. O pai dele tinha ido para a
Alemanha pra estudar, porque ele era muito boêmio. E a mãe do pai dele disse
“vai estudar, porque assim longe, você vai ter que estudar”. Só que ele não
estudou, ele casou e teve um filho. Na época da Guerra, a mãe do meu pai
faleceu. Ele pegou o filho embaixo do braço e voltou. Meu pai lembra que no
navio tinha uma mulher que cuidava dele, porque o que o meu avô ia saber de
cuidar de uma criança de três anos, ainda mais boêmio. Então ele foi morar com
a avó dele. Agora imagine: o meu avô chega e em vez de um diploma, traz um
filho de três anos. Então a mãe do meu avô tratou de arrumar um casamento pra
ele. Enquanto isso não acontecia, ela ficou cuidando do meu pai. E eles moravam
bem onde é o Mercadorama na Rua Mariano Torres. E a minha Oma tinha horta, como
todo mundo tinha. Plantava cenoura. Meu pai ia lá, tirava a cenoura, comia e
plantava o talo. E minha avó não conseguia descobrir o que estava acontecendo,
até que uma vez pegou ele comendo a cenoura. Ele levou uma surra porque comia a
cenoura da horta. Hoje em dia, tem que dar uma surra no filho porque comeu uma
cenoura. Desde criança, meu pai estudava na escola alemã, que era na Praça
Dezenove, no Grupo Tiradentes, por ali. E ele gazeava aula, porque ele adorava
ir no Mueller Irmãos, onde é o shopping, ver os homens trabalhando. Tanto que
tinha um paralelepípedo, que os homens na hora do almoço sentavam, embaixo
daquela janela. Então era o lugar preferido do meu pai. Ele escondia a pasta de
escola dele naquela pontezinha que tem no Passeio Público, no meio das pedras.
E ía pro Mueller, ficava na ponta dos pés no paralelepípedo, olhando os homens trabalharem.
Era a coisa que ele mais queria. Ele não queria estudar, ele queria trabalhar.
Mas um belo dia a avó ficou sabendo que ele estava gazeando aula. Levou aquela
surra em casa e ficou de castigo ajoelhado no milho. Chegou da escola no dia
seguinte, a mesma coisa: não apanhou, mas ficou de castigo no milho, porque
tinha gazeado aula. Outra história que ele sempre contava, já com a madrasta. A
madrasta mandava ele postar no correio e dava uns centavos pra ele comprar o selo.
Ele ia, só que no correio ele pegava o selo usado, colava e colocava a carta. E
a madrasta pensava: poxa, mas s resposta dos parentes nunca vem, lá de Santa
Catarina. Um belo dia chegou um monte de cartas, que não tinham sido enviadas
porque o selo era usado. Ele comprava doces com o dinheiro do selo. (...)
PE – A senhora
tem alguma lembrança relacionada à Fundição Mueller?
VO – Não, eu era
muito pequena. Mas a inauguração do shopping Mueller, para os lojistas, quem
fez foi a Churrascaria Ervin. Fizemos um almoço lá em cima, em uma manhã
extremamente fria, meu pai improvisou uma churrasqueira. E isso marcou bem,
porque era o primeiro shopping, e a churrascaria que foi fazer essa inauguração
para os lojistas e o pessoal da cúpula. O Salomão Soifer é nosso cliente já de
toda a vida, de antes do shopping Mueller e tantos outros shoppings por aí.
PE – Queria te
perguntar sobre o Jardinete Ervin Ofner, que foi dedicado a seu pai. Quando foi
inagurado?
VO – Faz uns
quatro anos, por aí. Na verdade pra mim, acho que pra meus filhos, não é isso
que importa. Tivessem posto, não tivessem. Um dia a gente chegou lá e estava
tudo pixado. Acho que não é isso que importa, o que importa é o que meu pai
deixou, os exemplos. Tem outras pessoas, tem parente meu que trabalharam aqui
com ele, que até hoje, já estão com idade e dizem que não conseguem por uma
garrafa com o rótulo virado. Meu pai era exigente. Mesmo com as garrafas
vazias, do lado de fora tinha uma prateleira e tinha que ser todas com o rótulo
direitinho, em fileira, tudo organizadinho. As garrafas, muitas vezes lavadas
pra não juntar moscas, abelhas. Em 2000 eu fui pra Itália, eu estava em frente
à Fontana de Trevi com a minha irmã e mais uma amiga, à noite, e passaram, acho
que da Índia, vendendo uns coletes de couro. E eu e minha irmã gostamos e
queríamos comprar um. Nisso veio um guardinha tocar eles porque não podia
vender ali. Mas eu disse “eu já provei, é só pagar”. Eu estava com o dinheiro
na mão pra pagar. O guarda disse que não e ia tocando o vendedor. E ali é
sempre cheio de gente. Eu vi dois senhores, jovens senhores, que vieram falar
com ele. Um italiano, falou em italiano com ele, e outro português brasileiro.
Ele disse que também era do Brasil e perguntou onde a gente morava. Ele também
morava em Curitiba. Eu
morava na época no Bom Retiro. Ele disse que morava no Boa Vista. Olha como o
mundo é pequeno. Eu disse que tinha uma churrascaria na Mateus Leme. Ele
perguntou “qual churrascaria?” e eu disse o nome. Ele disse “nossa, eu estou
sempre lá”. Então onde você vai, sempre tem alguém conhecido, alguém que
conhece a churrascaria. Fiquei muitos anos sem poder viajar porque eu só
trabalhava. Quando eu comecei a viajar, que eu percebi como a churrascaria é
conhecida. Como meu pai foi uma pessoa feliz, teve uma boa esposa, batalhadora,
companheira, amiga, teve duas filhas que nunca deram problema. E deixou um
nome. Qual é o homem que consegue tudo isso numa vida. Eu fiz cursos de poder
da mente e eu sempre procuro praticar. E eu sei que, se você tem uma energia
boa, você passa uma energia boa. Era só a minha mãe que temperava a salada,
ninguém punha a mão. Quando eu assumi, eu fiz a mesma coisa, era só eu que
punha a mão na salada. Enquanto eu estava mexendo, eu estava mentalizando,
mandando energia, e eu acho isso é uma coisa muito importante. Mesmo quando meu
filho faleceu, no sábado seguinte ao seu enterro a gente voltou a trabalhar.
Mesmo com uma dor imensa no coração eu mandava coisas boas enquanto eu
temperava, não foi tristeza que em mandei: “quem comer dessa salada vai ser
muito feliz, vai ter muita saúde”. Eu acho que essas coisas fazem a diferença. Por
seis anos antes de assumir aqui eu fiz tortas em casa. Eu tinha freguesia
que vinha de todo canto da cidade, mas eu nunca fiz propaganda. Mas também, se
era um bolo de aniversário de um velhinho, eu conversava com o bolo sobre essa
pessoa. Se era de criança, eu conversava mais ainda. Eu acho que isso é muito
importante e se todo mundo fizer um pouquinho, uma pitada disso na sua vida, a
gente consegue reformar esse mundo. Meu ex-marido sempre dizia: “você quer
mudar o mundo, reformar o mundo?”, mas se todo mundo fizer um pouquinho no
dia-a-dia, você vai reformar. Nem que seja um mundinho pequeno, mas você
consegue. (...) Mas é isso, consegui responder o que vocês queriam?
PE – A gente
queria agradecer muito pela entrevista
VO – Obrigada, e
que vocês tenham muito sucesso.
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